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SEMANA SANTA: UM ITINERARIO PARA A SANTIFICAÇÃO

Semana Santa: Um Itinerário para a santificação

Já se aproxima o dia da salvação, tão logo contemplaremos o grande mistério da nossa fé.

"O felix culpa, quae talem ac tantum habere meruit Redemptorem" - Oh, feliz culpa que mereceu tal e tão grande redentor (Pregão Pascal). Verdadeiramente, a nossa culpa, que diríamos antes da redenção, (in)feliz culpa, que nos roubou o paraíso, nos obsequiou o Redentor.

Grande mistério é o do amor de Deus por nós. Nós, criados perfeitos, contemplando a Deus possuindo as chaves do paraíso, perdemos, por culpa do pecado a nossa vida na graça, e quando aqui falo de culpa do pecado, não coloco o pecado como um ser animado que realizou um ato específico para roubar-nos o paraíso. Não! O mal não tem ser. O mal é justamente a ausência de ser. O que nos roubou o paraíso foi a nossa ganância, o nosso desejo de ser como deuses (Gn 3,5). Poderíamos estar gozando de uma vida bem-aventurada, se não tivéssemos desprezado o dom de Deus.

Mas, o “poderíamos” não deve ser entendido como uma impossibilidade, como algo que não mais poderá acontecer. Quando o homem pecou, nos diz o livro do Gênesis 3,24: "Ele baniu o homem e colocou, diante do jardim do Éden, os querubins e a chama da espada fulgurante para guardar o caminho da árvore da vida". E Cristo, com seu sacrifício redentor, devolveu-nos o acesso ao paraíso.

Queremos, com o auxílio da graça de Deus, revestir-nos de Cristo (Rom 13,14), buscando traçar um caminho, para por meio do sacrifício de Cristo, construir já em nós um céu na terra.

Podemos revestir-nos de Jesus Cristo pela imaginação, colocar-nos não ao pé da Cruz ou defronte dela, mas nela, curvar a cabeça sob a inscrição trilíngue, cingir a coroa de espinhos, receber os cravos martirizantes, sentir, entre os ombros, a friagem e a rugosidade do lenho, finalmente, apropriando-nos do ângulo da visão e da emoção do Senhor, ver pelos seus olhos e comentar com o seu coração, recordar, julgar e prever com ele, de tal maneira que dentro desse mesmo sentido e dessa mesma fantasia de uma substituição de pessoa, “já não sejamos nós que vivamos, mas Cristo que viva em nós” (Gal 2,20) [i].

A semana santa – especialmente o tríduo pascal – constitui para nós católicos, o ápice da nossa fé, o cume da nossa espiritualidade, pois, nesse tempo privilegiado, rememoramos o mistério da nossa salvação.

Estamos terminando o tempo da quaresma, onde fomos convidados à conversão e à penitência, para unir-nos mais intimamente a N.S.J.C. E agora vos pergunto, como vivemos esse tempo? Nos aproximamos mais do Cristo sofredor? Renunciamos às coisas que nos impediam de ser mais de Deus?

O nosso esforço constante deve consistir em ser mais de Deus, mais parecidos com Ele.

Traçar um itinerário para a nossa santificação, em tempos de relativismo, hedonismo, subjetivismo, fast food e delivery, pode parecer deveras desnecessário. E aqui surge outra pergunta: Acreditamos ser a santidade um elemento necessário para a vida, ou também nósjá fomos contaminados por essa cultura do provisório e do descartável?

O Cardeal Robert Sarah, em seu livro A noite se aproxima e o dia já declinou, nos exorta com força sobre o mistério de Judas na Igreja: Judas será sempre o nome do traidor e sua sombra paira hoje sobre nós. Sim, como ele, nós traímos! Nós abandonamos a oração. O mal do ativismo eficaz infiltrou-se por toda parte. Procuramos imitar a organização das grandes empresas. Esquecemo-nos de que só a oração é o sangue capaz de irrigar o coração da Igreja. Dizemos que não temos tempo a perder, queremos empregar esse tempo em obras sociais proveitosas. Quem não reza, já traiu. A partir daí, já está pronto para todos os compromissos com o mundo e trilha o caminho de Judas[ii]. Deixemos essas palavras calarem em nossos corações, que elas nos incomodem, nos questionem, nos tirem o sono e arranquem lágrimas de nós, se necessário for. Não se constrói santidade se não há luta, sacrifícios, perdas, entregas. O próprio Cristo se entregou todo por nós. E quando digo todo, não uso de figura de linguagem. Não! Ele deu até a última gota de sangue.

Devemos entrar nesses dias santos com um profundo espírito de oração, pois pela minha oração é Deus quem triunfa de mim. Quando me sinto de alma seca e árida, a oração faz-me recordar que se disse: “Clamarão as próprias pedras”. E como esse é um milagre que vale a pena, clamo. Peço a Deus que me atraia e, enquanto peço e para pedir mais de perto, vou me elevando. Quero que Deus me crie de novo em si, e crio-o em mim, dou-lhe a vida e peço-lhe a vida. É um trato eficaz de dois modos, porque Deus sempre nos ouve, e porque, como dizíamos, orar é já receber.[iii]

Do domingo de ramos aprendemos que nem sempre os nossos louvores são verdadeiros. Como aquele povo onde “os que iam na frente e os que vinham atrás gritavam: 'Hosana! Bendito o que vem em nome do Senhor! Bendito seja o reino que vem, o reino de nosso pai Davi! Hosana no mais alto dos céus!” (Mc 11, 9-10), mas, alguns dias depois “eles, porém, gritavam: 'Fora! Fora! Crucifica-o!’” (Jo 18,15). Quantas vezes nós preparamos ramos bonitos, com oliveiras, cantamos com força, mas depois O traímos. Que os ramos que prepararmos para esse dia não sejam como os que Adão e Eva prepararam para cobrir sua vergonha (Gn 3,7b).

Seguindo nesses dias santos a liturgia nos introduz na segunda-feira santa, nesse tão bonito gesto de Maria: “Maria, tomando quase meio litro de perfume de nardo puro e muito caro, ungiu os pés de Jesus e enxugou-os com seus cabelos. A casa inteira ficou cheia do perfume do bálsamo” (Jo 12,3). Que tipo de perfume tenho derramado aos pés do Senhor? Será que “em verdade nós somos para Deus o bom odor de Cristo” (II Cor 2,15)? Mergulhemos em nossa realidade espiritual, e com o coração sincero, livres de máscaras, nos questionemos sobre o que estamos oferecendo a Cristo e a Igreja. Somos chamados por meio do nosso carisma a entregar aos nossos irmãos e aos pobres o nosso melhor. Estamos entregando?

No seguinte dia, nos deparamos com o triste relato da traição de Judas. Quanta dor nos deveria causar escutar esse relato, e não somente pelo que o Senhor sofreu séculos atrás, mas, e especialmente, pelo que Ele sofre todos os dias. Quantos consagrados, sacerdotes e leigos, todos os dias apostatam a fé, ou, pior ainda, permanecem na Igreja, manchando-a, escandalizando aos pequeninos. Deveríamos tremer ao saber que não poucas vezes, nós mesmos fomos motivo de escândalo e queda para os nossos irmãos.

Muitas vezes nos julgamos superiores a Judas. Mas nós também traímos. Nos julgamos superiores pelo fato de que o nosso pecado ainda está encoberto. Mas, e se eles saíssem à luz? O que seria de nós se o nosso pecado fosse descoberto? Judas pelo menos obteve umas moedas por ter entregado o Senhor, o que obviamente não justifica o seu pecado. Mas e nós, o que ganhamos? Pensemos um pouco nisso.

Seguindo nosso caminho, na quarta-feira santa, repito aqui as palavras do nosso fundador, que já são parte do nosso itinerário espiritual de semana santa: Judas não somente traiu Jesus, mas também traiu a sua comunidade. Sem a comunidade tudo se torna mais difícil. A comunidade é a solução para todos os problemas. Quem se isola da comunidade corre o risco de, assim como Judas, também perecer.[iv] Façamos definitivamente o compromisso de, amparados pelo dom da graça de Deus que opera em nós, não mais trair, nem a Ele, nem a nossa comunidade.

Começamos agora o ápice dessa santa semana, damos início ao tríduo pascal. Aqui queremos configurar-nos a Cristo. Não somente seguí-Lo, mas ser um com Ele, manifestar a vida d’Ele em nossa vida.

Aqui, Cristo deixa à Igreja o que será o seu bem mais precioso, a Santíssima Eucaristia, se deixa a si mesmo como alimento das nossas almas.

Se aproxima o momento de Jesus entregar-se ao Pai, o seu coração se angustia. Preparemo-nos para consolar-Lhe. A beata Anna Catarina Emmerich relata em seu livro Vida, Paixão e Glorificação do Cordeiro de Deus que os apóstolos estavam ainda cheios de entusiasmo e amor, pela recepção do Santíssimo Sacramento e pelas palavras solenes e afetuosas de Jesus. Comprimiam-se em torno d’Ele, exprimindo-lhe de vários modos o seu amor e protestando que não o abandonariam nunca[v]. Eles tinham acabado de receber o pão da vida, eles que escutaram da boca do próprio Jesus: "Eu sou o pão da vida: aquele que vem a mim não terá fome, e aquele que crê em mim jamais terá sede" (Jo 6,35), agora escutam o mestre dizendo que chegou a sua hora. Jesus já se havia dado no pão, agora havia chegado o momento de dar-se inteiramente na cruz.

"Cristo vai ao encontro da sua paixão e morte com plena consciência da missão que deve realizar exatamente desse modo. É por meio deste seu sofrimento que ele tem de fazer com que "o homem não pereça, mas tenha a vida eterna" (Jo 3:15). É precisamente por meio da sua Cruz que Ele deve atingir as raízes do mal, que se embrenham na história do homem e nas almas humanas. É precisamente por meio da sua Cruz que Ele deve realizar a obra da salvação. Esta obra, no desígnio do Amor eterno, tem um carácter redentor. Por isso, Cristo repreende severamente Pedro quando ele pretende fazê-Lo abandonar os pensamentos sobre o sofrimento e a morte na Cruz"[vi].

Uma vez mais somos questionados. Quantas vezes nós fugimos do sofrimento e da dor, buscamos o passageiro, o transitório. Nos perdemos no nosso mundinho, fazendo de nós senhores de nós mesmos.

O exemplo de Cristo nos constrange. Ele se entrega livremente para salvar-nos, e nós quantas vezes, fazemos mal uso da nossa liberdade, que nos foi conquistada por um precioso preço, "pois sabeis que não foi com coisas perecíveis, isto é, com prata ou ouro, que fostes resgatados de vida fútil que herdastes dos vossos pais, mas por sangue precioso, como de cordeiro sem defeitos e sem mácula, Cristo"(I Pd 1,18-19).

Assumamos sem medo o nosso lugar na cruz, permitamos que com Cristo seja sepultado o nosso homem velho, corrompido pelo pecado.

"Quero enfatizar esse ponto essencial: Jesus Cristo é a única fonte da salvação e da graça por meio da Cruz. É mediante a oferta da sua morte, triunfante no pecado, que ele nos confere a vida sobrenatural, a vida de amizade com ele, que se consumará na vida eterna. Para encontrar em Jesus Cristo a vida que Deus nos concedeu, não há outro caminho que o da Cruz, a qual é chamada pela Igreja de Spes Única, a “única esperança”. A Cruz da qual São Paulo diz: “quanto a mim, não aconteça gloriar-me senão na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, por quem o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo” (Gl 6,14). São Paulo é direto: em sua pregação não quer saber nada além de Jesus Cristo e “Jesus Cristo crucificado” (I Cor 2,2)"[vii]

Cristo ressuscitará, e nós ressuscitaremos com Ele, pois, eis que vivemos com Ele aqui, e no céu reinaremos com Ele. Essa é a Sua promessa, pois: "Eis uma verdade absolutamente certa: Se morrermos com Ele, com Ele viveremos. Se soubermos perseverar, com Ele reinaremos. Se, porém, o renegarmos, Ele nos renegará. Se formos infiéis... Ele continua fiel, e não pode desdizer-se." (II Tim 2, 11,13)

Rejubilemo-nos irmãos meus. Afirmemos com São João da Cruz na Canção da Alma enamorada: "O céu é meu e minha é a terra; meus são os homens, os justos são meus, e meus os pecadores; os anjos são meus, e a Mãe de Deus e todas as coisas são minhas. O próprio Deus é meu e para mim, porque Cristo é meu e todo para mim. Que pedes pois e buscas, alma minha? Tudo isto é teu e tudo para ti. Não te rebaixes nem atentes nas migalhas que caem da mesa de teu Pai. Sai para fora de ti e gloria-te da tua glória, esconde-te nela e goza, e alcançarás as petições do teu coração". O céu é meu, o próprio Deus é meu, e eu aqui buscando, como o filho pródigo (Lc 15, 11-32), alimentar-me com a comida dos porcos. Não nos rebaixemos buscando uma falsa glória no mundo, tenhamos a coragem de voltar e dizer: "Meu pai, pequei contra o céu e contra ti, já não sou digno de ser chamado teu filho”, (Lc 15,21) para poder escutar do Pai misericordioso: “Trazei-me depressa a melhor veste e vesti-lhe, e ponde-lhe um anel no dedo e calçado nos pés. Trazei também um novilho gordo e matai-o; comamos e façamos uma festa. Este meu filho estava morto, e reviveu; tinha se perdido, e foi achado. E começaram a festa." (Lc 15, 22-24).

Nada nos falta, já temos tudo. Já temos Deus, e quem tem a Deus, nada lhe falta, só Deus basta. (Santa Teresa d’Avila).

Que nossa alma, a exemplo da de Cristo, após passar pelo sofrimento experimente a glória do céu.

Tomemos a mão de Maria Santíssima. As mesmas mãos que receberam o divino corpo no presépio, que o ajudaram a baixar da Cruz, essas mesmas mãos sejam para nós abrigo e seta. Indica-nos ó Virgem e mãe o caminho para subir ao céu. Ajuda-nos a passar pelos sofrimentos dessa vida breve, com os olhos na eternidade do céu.


Frei Narciso Arauto da Cruz, PJC


[i] Sertillanges, Antonin-Gilbert; 1947.O que Jesus via do alto da Cruz, P. 7-8 [ii] Sarah, Robert; Diat,Nicholas; 2019. A noite se aproxima e o dia já declinou, P. 13 [iii] Sertillanges, Antonin-Gilbert; 2020. Deveres: dez minutos de cultura espiritual por dia P. 182-183 [iv] Sobreiro, Gilson; 2013. Nuntio Vobis Semana Santa. [v] Emmerich, Ana Catarina; 2004. Vida, Paixão e Glorificação do Cordeiro de Deus. P. 137 [vi] Vatican. Salvifici Doloris.

< http://www.vatican.va/content/john-paul ii/pt/apost_letters/1984/documents/hf_jp-ii_apl_11021984_salvifici-doloris.html> [vii] Sarah, Robert; Diat, Nicholas; 2019. A noite se aproxima e o dia já declinou, P. 39

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