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Ser religioso em terras distantes

Atualizado: 28 de mar. de 2019


Quando recebi o convite para escrever algo sobre o tema proposto no título não sabia bem o que iria dizer, mas aceitei a proposta. Não vou chamar de formação e, se me permitem, vou até fugir um pouco do convencional, vou escrever em primeira pessoa quebrando o esquema de uma boa dissertação, penso que será mais um pequeno relato pessoal, uma partilha da pouca experiência vivida até aqui, do que qualquer outra coisa.


Partindo do princípio de que “a Igreja peregrina é, por sua natureza, missionária” (Decreto Ad Gentes, 2), digo que assim como nosso patrono São Paulo, penso que anunciar o Evangelho (neste momento em terras distantes) não é para mim motivo de glória, mas um dever, “ai de mim se eu não evangelizar” (I Cor 9, 16). Portanto, estar em terras distantes é, antes de tudo, uma escolha d’Ele. Como diz nossa Regra de Vida, a iniciativa é sempre d’Ele, e isto tira de nós todo mérito. Além disso, sabemos que o protagonista da missão é o Espírito Santo.


Estando claro que não pretendo dar uma formação sobre o que é missão (não estou capacitado para isso), e que a missão é do Senhor da Messe e Pastor do rebanho, passemos à minha experiência de ser um religioso em terras distantes.


Em primeiro lugar, digo que é preciso um coração disposto a partir, a deixar, e não somente uma vez, mas um coração disposto a continuar partindo e deixando todos os dias. Partir da nossa terra natal, mas partir diariamente da terra das seguranças que criamos e trazemos dentro de nós, deixar o que trazemos dentro é mais difícil que deixar o que ficou no Brasil. Viver aqui tentando os mesmos esquemas que funcionaram aí, querer resolver as coisas da forma que se resolve aí, evangelizar como se evangeliza aí, esqueça. Não é possível explicar com palavras como o “mundo” gira diferente aqui. Podem haver frustrações grandes, se não estivermos conscientes de que não se deve esperar os resultados com os quais estamos acostumados.


Ao longo desses quase nove meses aqui (só nove meses), fui me dando conta de que para contextualizar alguém não basta dizer que estamos na África, é um continente muito grande com realidades extremamente diferentes, e nós estamos na realidade de Moçambique, que é diferente da de outros países.


Mas também não é suficiente dizer que estamos em Moçambique, estamos no extremo norte do país, na província de Cabo Delgado, que é bem diferente das outras províncias em vários aspectos. Mas a coisa ainda não termina aí, pois estamos na zona norte de Cabo Delgado, é uma realidade muito peculiar. Aqui é “Belém da Judéia”: num país inteiramente pouco favorecido, Cabo Delgado talvez seja a zona menos favorecida; num país que sofreu com as guerras (a da independência e a civil), é a zona que mais sofreu com a guerra; na evangelização contam-se apenas cem anos da chegada dos primeiros missionários, pelo que ainda é um anúncio que nos desafia com singularidade (um exemplo rápido é o de que o idioma shimakonde é o que mais carece de material de evangelização, há pouca coisa escrita), e assim por diante.


Enfim, o objetivo não é pintar uma imagem negativa da realidade nem fazer ninguém sentir pena (não estou sendo sensacionalista), o objetivo é só introduzir outro aspecto da minha experiência. Diante de um cenário particularmente exigente, com seus desafios únicos, situações que são enfrentadas com certa exclusividade aqui, muitas vezes a missão na África me pareceu e ainda parece algo tão maior que eu! Me questionei muito nos primeiros meses: “o que eu vim fazer neste lugar!? O que eu, na minha pequenez, na minha pobreza, posso fazer por um lugar desse!? Eu poderia viver cem anos aqui e não mudaria nada!”.


A “África” (esta pequena parte que está diante de meus olhos) acaba sendo muitas vezes algo assustador, extremamente maior que nós. Pode-se ter a impressão de que nossa fé, nossa esperança, são colocadas a prova frequentemente, pode-se ter a impressão de que é inútil estar aqui e é preciso muito cuidado com essas tentações.


Fica difícil resumir a experiência em poucas linhas, são muitas as faces da missão que valeriam

a pena mostrar, contudo, para começar a concluir, não é um “mar de rosas” ser religioso em terras distantes, e quem tem um sonho “romântico” de fazer missão na África (como eu sempre tive) precisa estar consciente, ter os pés no chão, não é romântico. O idioma aqui é um desafio porque não está escrito, não há uma gramática, uma regra, um esquema através do qual se possa aprender, mas é extremamente necessário, isto quer dizer que é preciso aprender “na raça”, como se diz no Brasil, mas é fundamental falar-lhes na língua materna.


Apesar de ser um país que tem a língua portuguesa como idioma oficial, por estas bandas daqui os que sabem português não são maioria. A lista poderia seguir dizendo várias outras coisas além de: a cultura é bem diferente, a forma de “fazer pastoral” é diferente, vale mencionar rapidamente os momentos de solidão, o “isolamento”, o sentimento de impotência, os desafios sociais que são um “buraco negro”, etc. Resumindo bem, há os “ossos do ofício”.


Não obstante, uma coisa é certa: é preciso evangelizar! Se Evangelho é boa nova, novidade, enquanto houver uma pessoa que não ouviu o Evangelho, ele continuará sendo novidade. A missão é necessária! O trabalho é árduo, exige coragem, predisposição para ir e disposição permanente para continuar, mas, só para ilustrar um pouco o que nos anima a continuar, existem alguns irmãos nossos tendo acesso a alguns sacramentos pela primeira vez depois de anos, e a sede que têm de ser cristãos e o desejo de aprender mais (expressados a seu modo) são mesmo admiráveis!


Como religioso, não fiz muita coisa aqui até agora (não sei se farei), não posso administrar os sacramentos que são tão necessários e escassos, os desafios sociais parecem não ter uma resposta, as poucas capacidades que achava ter não servem muito, etc... É uma longa história (se pensa que leva jeito para catequese, ou para dar formação, ou para jovens, espere só para ver! Vai se surpreender com o nível a que chega a afirmação é preciso aprender tudo do zero...). Nesta linha de raciocínio, permitam-me só mais um parêntese: uma irmã brasileira que está aqui há muitos anos disse: “leva uns três anos para começar a descer do avião”, então, ainda não estamos nem engatinhando.


Mas tenho me dedicado a ser irmão destas pessoas, estar com elas, aprender com elas, provar da alegria delas ao ver-nos tentar algumas palavras em shimakonde, sentir a esperança de novos tempos que brota em seus corações por, pela primeira vez, terem a presença de missionários junto deles, e outras coisas mais. Há um grande caminho a percorrer na construção do Reino de Deus nestas terras, há um percurso longo para ver formada uma Igreja local bem consolidada, mas passos estão sendo dados.


Sei que falei de modo um pouco descoordenado, que talvez não haja começo, meio e fim neste texto, mas foi a forma que encontrei de sintetizar ao máximo minha curta experiência aqui. Peço desculpas ainda pela falta de formalidade no estilo do texto, mas espero contribuir para algo com este breve relato.


Nossa Senhora da África, rogai por nós!



Frei Cléofas Filho do Monte Calvário, pjc.

Muidumbe, 30 de dezembro de 2018.

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